Geral
Violência doméstica e drogas são mazelas que só avançam em aldeia tradicional
Na Te’yikue em Caarapó, mesmo assim índios lutam para manter tradição, mas igrejas também preocupam
BATANEWS POR HELIO DE FREITAS, DE DOURADOS
A 20 quilômetros do perímetro urbano de Caarapó, ao lado da MS-280, estrada de terra que liga ao município de Laguna Carapã, fica a Aldeia Te’yikue, habitada por oito mil guaranis-kaiowas. Na quinta-feira (15), o Campo Grande News esteve no local para conversar com os moradores sobre os efeitos da pandemia de covid-19 na comunidade. Hoje é Dia do Índio.
Ao contrário da reserva de Dourados, onde as aldeias Bororó e Jaguapiru se parecem mais com os bairros pobres da cidade, a Te’yikue (antiga morada) ainda mantém tradições já deixadas de lado em outras terras indígenas.
Não existem lavouras comerciais de milho e soja. Boa parte das terras é ocupada por vegetação nativa e os moradores se dedicam a plantar culturas de subsistência, como arroz, mandioca, banana e o próprio milho, mas apenas para comer e vender o excedente nos bairros da cidade. Muitas famílias ainda vivem em casas próximas, geralmente perto do patriarca, sistema que faz parte da cultura dos guaranis.
A Te’yikue está encravada no meio de um barril de pólvora. Desde 2016, nove fazendas localizadas em volta da aldeia estão ocupadas pelos índios. Muitos moravam na própria aldeia e outros vieram de outras regiões de Mato Grosso do Sul.
Essas áreas de retomada (como os índios chamam as propriedades ocupadas) já foram palco de tragédia. Em junho de 2016, o agente de saúde indígena Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza foi morto a tiros aos 26 anos de idade em confronto com fazendeiros que tentavam por conta própria despejar os índios da Fazenda Yvú.
Em represália, índios liderados pelo pai de Clodiode atacaram uma equipe da Polícia Militar, colocaram fogo na viatura e espancaram os três policiais. O confronto deixou sequelas e fez aumentar o preconceito dos moradores da cidade contra os índios.
Pandemia e preconceito – Mas foi na pandemia da covid-19 que o preconceito se tornou ainda mais explícito. “Queriam até impedir a gente de entrar na cidade', conta o capitão Jorginho Soares Martins, que administra a Aldeia Te’yikue. Aos 26 anos, o professor Jorginho é uma das mais jovens lideranças indígenas do Cone-Sul.
Jorginho conta que muitos trabalhadores indígenas perderam o emprego durante a pandemia. Nem os “bicos' que antes ajudavam na sobrevivência eles consegue mais. A vida que sempre foi difícil ficou ainda mais dura.
Veja o vídeo com a entrevista do capitão Jorginho:
Mas a pandemia não é nem de longe o maior problema enfrentado pela comunidade de Te’yikue. Perguntado sobre qual seria a principal dificuldade que a liderança precisa lidar todos os dias na aldeia, Jorginho respondeu no ato: “a violência doméstica junto com o uso de drogas'.
Adolescentes da aldeia cooptados por traficantes que vêm da cidade usam e vendem drogas na comunidade. “A gente denuncia, mas a polícia quase nunca vem. Quando a gente prende e leva para a polícia, os adultos ficam presos, mas os menores de idade são soltos e depois nos ameaçam, ameaçam nossa família', conta Duclécio, 50 anos, braço-direito do capitão na administração da aldeia.
Jorginho contou que até um pastor evangélico da comunidade foi denunciado pela própria liderança da aldeia por bater na esposa e abusar da filha. Os crimes foram descobertos depois que a adolescente fugiu de casa, para escapar do abuso do pai. Foi o próprio capitão que denunciou o caso à polícia e o pastor está sendo processado.
Segundo Jorginho Martins, a expansão das igrejas evangélicas dentro da aldeia também é motivo de preocupação. São 47 ministérios instalados na Te’yikue.
O capitão conta que os pastores da aldeia pressionam para poder fazer cultos, mas são barrados pela administração local devido aos decretos estadual e municipal para conter aglomerações. “Neste Dia do Índio não vamos ter festa, não vamos ter eventos, por causa da pandemia', lamenta.
Na opinião de Jorginho Martins, o grande número de igrejas evangélicas ameaça a preservação da cultura tradicional dos guaranis-kaiowas. “Temos a nossa cultura e precisamos lutar para mantê-la. Não podemos ignorar nossa história e nossos costumes. Estamos lutando para preservar nossos caciques, nossos rezadores'.
A Aldeia Te’yikue tem três caciques rezadores. O mais respeitado deles é Lidio Sanches, 66 anos. O Campo Grande News conversou com o cacique. Ele diz que sabe fazer remédio para curar a covid-19 usando plantas nativas da aldeia.
Lidio culpa os chineses (a quem chamou de japoneses) pela disseminação do vírus e disse que a intenção era matar outros povos. Apesar de afirmar não ter medo da doença, Lidio disse que só sai de casa para ir na roça. “Fico com medo de pegar e espalhar para outras pessoas'. Ele já tomou a vacina contra covid-19, assim como a maioria dos demais moradores da aldeia.
Veja o vídeo com a entrevista com o cacique Lidio Sanchez:
O capitão Jorginho Martins disse que uma de suas metas à frente da administração da Aldeia Te’yikue é garantir mais autonomia para resolver os problemas internos dentro da própria área indígena. Duclécio conta que antes, as próprias lideranças aplicavam punições a autores de pequenos delitos. “Mandava carpir, limpar uma roça, fazer serviços', se recorda.
Jorginho disse que recentemente teve reunião com autoridades em Caarapó para pedir apoio e conseguir legalizar uma espécie de polícia interna, para garantir mais segurança para os moradores.
Serviço semelhante já foi autorizado em Roraima, segundo o capitão. A informação chegou até ele através de um policial da Força Nacional de Segurança Pública, presente em Caarapó desde os conflitos de 2016.
Tirando os agentes da Força Nacional que estão no local para evitar novos confrontos com fazendeiros, não existe policiamento preventivo na Te’yikue. “Queremos cuidar dos nossos problemas aqui dentro, resolver o que pode ser resolvido. Do jeito que está, a gente não pode fazer nada e o Estado também não faz nada. Também pedimos mais autonomia para decidir sobre as medidas para conter a pandemia', afirma o capitão.
Mesmo sem ajuda de nenhum órgão governamental, a liderança da Te’yikue mantém barreiras sanitárias nos dois principais acessos à aldeia. Com termômetro digital, os índios medem a temperatura de quem chega e pergunta o motivo da visita. Diariamente centenas de moradores, a pé, de bicicleta, de moto e de carro cortam os 20 km de terra da aldeia até a cidade, para passear e fazer compras.