Ao invés da droga, dor é 'vício' que neurótico encara um dia por vez

Após ouvir que era viciada em sofrer, Adriana* procurou Neuróticos Anônimos e encontrou pessoas como ela

BATANEWS/CGNEWS


Membro do N/A durante 30º encontro da irmandande em Campo Grande. (Foto: Juliano Almeida)

“Sentia muita aflição, vazio, angústia. Não conseguia desenvolver minha vida normalmente. Comigo sempre faltava alguma coisa', diz Ana *. Em fevereiro de 2024, ela volta 38 anos atrás para recordar o período no qual não sentia vontade de viver, mas tinha medo de morrer. A depressão fez Ana recorrer ao Neuróticos Anônimos onde encontrou o caminho para assumir o controle da própria vida e das suas emoções.

A palavra ‘neurótico’ não é nada suave. Ela gera impacto e é difícil não pensar nos estereótipos relacionados à neurose. Talvez seja por isso que uma das primeiras coisas que Ana fez questão de dizer é que o N/A é constituído por ‘pessoas alegres’.

No sábado (24), o Lado B acompanhou o 30º encontro estadual dos Neuróticos Anônimos, no Instituto Missionário São José. No local, membros dos três grupos de Campo Grande estiveram reunidos para. Nesta reportagem constam os relatos de pessoas que têm histórias diferentes, mas em comum o N/A.

Ana chegou ao Neuróticos Anônimos há 38 anos com 139 kg. Sem emprego, casa, roupas e dinheiro. Não foi do dia para a noite que ela perdeu tudo, foi aos poucos. Era como se Ana tivesse tropeçado e caído no buraco, que tomou conta de tudo ao redor.

“Essa sensação de vazio foi crescendo, foi me dominando de uma forma que era maior que eu. Minha existência foi ficando pequenininha. Me tornei uma pessoa magoada, triste', conta.

Esse período, segundo ela, era de ‘não existência’. “É uma dor que poucos conhecem e não se falava em depressão. [..] Eu chorava muito, dormia o tempo todo. Acordava para comer e comia para dormir', explica. A depressão resultou no auto isolamento e também na rejeição, já que pessoas próximas foram se afastando.

A rejeição deu lugar ao acolhimento quando Ana conheceu o N/A. Hoje a mulher que fala com a reportagem não se parece nem um pouco com a do passado. Mesmo assim, ela não coloca o passado numa linha do tempo distante de fevereiro de 2024. Na conta dela não são 38 anos de N/A. “É só por hoje, é mais um dia', afirma.

“Só por hoje evitarei o descontrole emocional' é uma das palavras de ordem da irmandade. O grupo, assim como Alcoólicos Anônimos, Jogadores Anônimos e Narcóticos Anônimos, também segue a cartilha baseada nos 12 passos e tradições.

No grupo e junto com outros companheiros, Ana conta que conseguiu retomar o controle de si. “Eu tive essa estrutura e apoio porque quando um companheiro traz um relato é uma terapia de espelho. Você olha o que ele está falando, identifica em você e começa a criar força para corrigir', comenta.

“Você é viciada em sofrimento' - Foi essa frase que Adriana * ouviu durante uma das sessões com a psicóloga. De pronto veio o choque, a não aceitação e depois o entendimento. Diferente de quem tem dependência com álcool, drogas ou jogo, Adriana tinha como vício a dor.

A baixa autoestima, segundo ela, fez com que vivesse diversos relacionamentos ‘tortos’. Um deles, Adriana compartilhou durante a entrevista. “Tinha um relacionamento conturbado com uma pessoa e na época vivia fuçando as redes sociais dele. Eu procurava ele para fazer serviços para mim, era uma coisa muito louca', relata.

O sofrimento fazia parte dessa relação, assim como nas demais. O padrão e o ciclo sempre se repetiam e foi aí que Adriana ouviu a verdade nada fácil de aceitar. “Minha psicóloga falou: ‘Você gosta de sofrer, você é viciada em sofrer. Invés de ser viciada em álcool, cocaína, você é viciada em sofrimento', recorda.

Por recomendação da profissional, ela buscou a irmandade há 16 anos. “Cheguei na sala de neuróticos achando que iria encontrar um monte de gente babando, coisas assim. Quando vi me deparei com pessoas iguais a mim no sofrimento, depressão e ansiedade', afirma.

Buscando a ‘sobriedade e serenidade’ um dia por vez, Adriana tem outra forma de encarar a si, as pessoas e os relacionamentos. Entender que términos acontecem, que não precisa aceitar qualquer parceiro e que pode ser feliz independente de estar com alguém ou não são coisas que fazem parte da sua realidade.

A baixa autoestima e os dias em que queria ser uma barata para que ninguém se aproximasse ficaram para trás. “Hoje eu me amo', resume. O amor próprio, no entanto, não torna fácil o processo de controlar as próprias emoções.

Um dia por vez, Adriana segue conseguindo fazer algo que admite ser complicado. “É muito difícil manter o controle emocional e eu sou uma pessoa muito descontrolada. Ontem mesmo estava perdendo o controle em uma discussão e fiquei quieta. Se fosse antigamente não conseguiria', diz.

“Meu nome era raiva' - Amanda* cresceu no lar onde cedo presenciou os rompantes emocionais da mãe que terminaram com xingamentos. Da mulher que a pôs no mundo chegou a ouvir que tinha sido na verdade achado na lata de lixo. Aos seis anos, Amanda chegou a ser chamada de ‘vagabunda’ por essa mesma mãe.

Esse é só um resumo  relatado por ela durante a palestra do N/A. Antes de chegar ao Neuróticos Anônimos, Amanda passou pelo Alcoólicos Anônimos. Ela começou a beber cedo e descontava na bebida a frustração que sentia.

Do AA, ela buscou no N/A resolver o que apenas na primeira não conseguiria. “Quando cheguei na programação meu nome era raiva e meu sobrenome era culpa', diz. Antes desse momento, todas as escolhas que tinha feito foram baseadas na doença.

Em boa parte dos anos, Amanda fez escolhas nocivas devido a doença, se negligenciou, mascarou sentimentos e tentou compensar alguns deles. “Eu tinha ansiedade, mas me passava como uma pessoa super descolada', diz.

Com a falsa ideia de que deveria ser ‘perfeita’, ela também não aceitava que podia ser um ser humano com falhas. Até respirar era difícil. “Quando cheguei no N/A tinha um problema que não conseguia respirar. Eu não conseguia encher o pulmão de ar porque isso significava vida e eu queria morrer', expõe.

No programa, Amanda ressignificou as dores que carregava quando chegou à sala do N/A. Na irmandade, ela é mais uma das que acolhem aqueles que chegam com questões relacionadas à depressão, ansiedade, raiva, angústia e outros problemas emocionais. É no grupo que os membros aprendem a levar uma vida equilibrada, mantendo um dia por vez o controle emocional.

Em Campo Grande, o Neuróticos Anônimos é dividido em três grupos diferentes:

* Nomes e datas foram alterados nesta reportagem para preservar a identidade e o direito ao anonimato dos membros do N/A